Blogue literário deTchalê Figueira

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

LETRAS SOLTAS


Ulisses a espera de Penélope:

Ulisses como todos os rapazes de S. Vicente, tinha os olhos voltados para a baía do Porto Grande. Deslumbrado com os vapores da Blue Star e da Mala Real ancorados na baía da velha cratera em semicírculo, enxergava também Monte – Cara, a bela montanha, secularmente contemplando nuvens passando, feito um poeta em silencio…

Ulisses, nos seus sonhos, idealizava a distante Argentina nas Américas… e, um belo dia, enchendo-se de coragem, foi ter com António Cara Linda, um abastado negociante de barcos, velho amigo da sua família.
Tirando o boné em sinal de respeito, entrou no enorme armazém de Cara Linda, repleto com miríades de cordas, tintas, e outros objectos marítimos, para Ulisses desconhecidos. No fundo do gigantesco armazém, encontrou António Cara Linda sentado numa velha cadeira americana de vai vem, a moda dos Cow Boys, com as pernas estendidas numa enorme mesa de mogno, repleta de velhos papéis. Lia, um jornal desportivo.
Após cumprimentar o negociante, sem rodeios, Ulisses foi directamente ao assunto e, expressando de forma clara, prometeu a António Cara Linda, jurando por Deus, que iria trabalhar arduamente na terra das pampas, e um dia, devolve-lo o empréstimo para a viagem à terra das pampas, das vacas infinitas, terra de um tal de Jorge Luís Borges, um poeta cego.

Cara Linda, homem bondoso, antigo emigrante que após trinta anos de dura labuta no mundo, tinha regressado endinheirado a cidade do Mindelo, compreendeu perfeitamente o direito de sonhar do rapaz, foi generoso…

Anos mais tarde, depois de muitas vicissitudes, bem da vida, Ulisses era o mulato mais desejado em todo o Doc Sur – Buenos Aires. Bailava Tango melhor do que ninguém, trabalhou com primor, tinha amealhado em pouco tempo, uma considerável fortuna, vendendo charutos de contrabando. Visitava frequentemente, alcovas e bordéis das belas senhoritas Portenhas, sem nunca esquecer, Penélope, a mulata mais linda da ilha, que ele carregava numa foto, religiosamente guardado na sua carteira de couro argentino genuíno…

Anos mais tarde, após uma longa troca epistolar com Penélope, que durou cinco anos e cinco meses, resolveu pedir aos pais da donzela a sua mão, e foi grande a alegria de Ulisses, quando recebeu a contente epístola, com a bênção, dos progenitores da amada…

Através de um procurador, com rígidas instruções dadas por Ulisses, foram regrados os papéis na inflexível burocracia colonial na ilha, meses depois tinham marcado a data do casamento e… obviamente por procuração, devido a ausência do noivo, emigrante, na distante Argentina…


Naquele dia, a cidade brilhou! … Contam os mais velhos da ilha, que Penélope, até hoje, foi sem dúvida, a mais linda de todas as noivas! Naquela data memorável, fora conduzida ao altar pelo excelentíssimo, Sr. Doutor juiz, Manuel da Cunha e Sacramento Pais Ferreira da Silva, padrinho do enlace, por ordens do mulato Ulisses.

Célebre foi a festa do enlace com centenas de convidados distintos, na sala do Nho Jom Tolentino no bairro Monte, onde tudo foi foguetes, tambores, e tonelada de manjares, festa que durou, cinco dias e cinco noites, sem parar…

Terminada a euforia e ressaca da festança, duas semanas mais tarde, Penélope aproveitando um barco de passageiros, embarcou para Buenos Aires numa noite de Fevereiro, com um frio cortante a fazer sentir, um escuro de breu, e uma maldita cacimba, chicoteando as costas dos remadores se mi nus, remando num dos botes de António Cara Linda que transportou a bela Penélope, para um vapor inglês da mala real, ancorado na bela baía de São Vicente…

Penélope, como o coração apertado de saudade da sua família, triste embarcou no navio inglês de nome Faith, barco da mala real, que rumava primeiro ao porto de Santos no Brasil, e logo para Buenos Aires, capital da Argentina…
Num ambíguo sentimento de curiosidade e saudade, Penélope deixou os pais no cais da alfândega chorando, acenando a sua princesa com lanternas acesas, naquele piche tropical no velho cais, com suas gruas fálicas, fornicando as estrelas.
Era, a hora di bai… pensou Penélope, naquela noite, lembrando por momentos a bela morna do poeta Eugénio Tavares. Com certa nostalgia e um certo transe, ia escutando o chapinhar dos remos do bote, entrando e saindo da água salgada, daquele mar profundo…

Horas depois, com o paquete cortando o azul do céu e do mar, num esforço titânico ela dormiu. No segundo dia de balanço, enjoada, Penélope logra sair da cabine, depois de ter vomitado as tripas coração, de tanto chorar, até não ter lágrimas para derramar, de tanta saudade…
Com as pernas tremendo, dirige-se ao salão da nave. Entra pela a porta adentro, depara com um passageiro Cabo-verdiano, um belo homem, com quem já tinha cruzado na pequena praça Nova, na cidade do Mindelo…
O cavalheiro, um peralta de paletó branco e sapatos a duas cores que brilhavam impecavelmente, ao avistar a formosa mulata, levanta do seu lugar, convida a Penélope de forma cordial para a sua mesa, no amplo salão inglês, decorado com um enorme quadro com motivos de uma caçada, onde homens a cavalo, e uns sabujos raivosos com dentes afiados, perseguem uma raposa numa floresta deprimente, escura, certamente pintado por um pintor kitsch…
Com o seu cabelo crespo, alisado com brilhantina a moda de Carlos Gardel, e um bigode perfeitamente simétrico, o elegante homem é, um aventureiro, que reside em Salvador da Baía e está regressando a terra do candomblé, após umas longas férias no seu arquipélago, terra onde nasceu.
Com seu ar de sedutor afro-latino, Penélope não resiste ao charme do peralta, começam um namoro e, no quinto dia de navegação, ela é seduzida de forma admirável, por gestos graciosos do belo cavalheiro, também bonitas palavras, declarações de amor, no belo cantado português do Brasil…

Ela é desflorada com mestria, num piscar de olhos, pelo astuto António Cabo-Verde, malandro cafétão, conhecido em todas as esquinas na cidade de Salvador da Baía. Amaram-se perdidamente até a exaustão, perante a indiferença da tripulação…

– Coisas do destino!!!! Penélope, nunca chegou ao seu destino! … E, como diz um velho sábio: O destino?... O destino, a gente faz! …

Arrasado pela fatalidade, sem nunca perceber o paradeiro da amada, louco de dor, Ulisses perdeu a noção do tempo…
– Hoje, velho e andrajoso, tem uma barba enorme, cabelos sujos desgrenhados, feito punhais, prontos para lhe espetar, no seu coração destroçado…
Triste, Ulisses senta todos os dias, horas sem fim, no cais numero 7 em Doc Sur Buenos Aires, acompanhado do seu fiel cão, Argos… Olha fixo, sem mexer as pálpebras. A frente, o vazio do imenso mar…
Dizem, que está esperando o fantasma da amada perdida, que nunca chegou aos seus braços.

Tchalê

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